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Faísca

  • Foto do escritor: Fê Pier
    Fê Pier
  • 1 de abr. de 2021
  • 3 min de leitura

Aos poucos vê-se pelas ruas um ruído longínquo de indignação. Um adesivo colado no metrô. Um lambe no poste. Um carimbo de insatisfação.


Revolta? Ainda não. O que está acontecendo não é agressivo, tampouco rompante. É gradual, lento e ainda bem despretensioso. Mas é um começo.


Estava em 2019. A última vez que ela viu algo assim acontecer já faziam uns 6 anos. Um povo passivo acostumado com migalhas e desrespeitos começou a perceber que algo estava errado.


"Como assim os caras do passado não nos alertaram que chegaríamos a esse ponto de novo?"


Estavam preocupados demais lutando pela liberdade formal e se esqueceram de avisar que tínhamos também outros direitos. A luta deu frutos e trouxe consigo a rainha Dona Constituição, dona também da porra toda, senhora da nova era, promessa de transformação.


Mas descobriu-se, então, que texto não enche barriga, que letras são bonitas mas não alcançam a todos, que dependendo da cor do papel em que se escreve o (con)texto tem outra conotação.


Passaram-se anos desde então. A rainha trintou. Aos poucos, ao longo de sua vida, percebeu que fazia parte de uma mera fantasia de um reino de homens brancos que fingiam se importar. Foi rasgada, pisada, desrespeitada e humilhada.


Constituição descobriu que de realeza ela não tinha nada. Ela era a filha da empregada com o trocador, cria da favela, mulher, preta e pobre, cheia de direitos escritos, vazia de dignidade e de humanismo, assim como grande parte do povo.


Aos poucos perceberam que aquele emaranhado de caracteres bonitos não lhes acrescentava em nada. A vida, dura, aos poucos foi minando a esperança de um povo sofrido e cansado.

Afinal, quem tem tempo de pensar em esperança quando se tem que trabalhar todos os dias, em dois turnos, sábado, domingo e feriado pra pagar a comida dos filhos? E assim a vida seguiu.


Até que um dia em meados de 2013, estava no centro da cidade, esperando o ônibus que a levaria do primeiro para o segundo turno de trabalho. Afinal, desde os 14 anos, Constituição estava acostumada com sua obrigação contribuir com as contas de casa.


Mas naquele dia, passou por ela uma passeata. Milhares de pessoas - às quais ela, preconceituosamente, julgou como desocupadas - protestavam por melhores condições de vida. Não havia muito um consenso sobre o que os manifestantes queriam, redução no preço da passagem, valorização da moeda, o fim da corrupção.


O que importa é que, desocupados ou não, aquele povo antes passivo, apático e complacente plantou uma sementinha em seu coração de que as coisas poderiam melhorar. Essa pequena muda de esperança foi suficiente para contaminar sua vida, sua casa, sua família e sua comunidade. As coisas tinham que melhorar.


Pois bem. De lá pra cá, a coisa desandou de vez.


Constituição viu a coisa piorar muito, viu a primeira presidente do país sofrendo um golpe sem fundamentos daqueles que eram seus aliados. Viu um homem que pregava ódio pela sua cor e classe social ser eleito presidente. Viu golpes e guerras eclodindo todos os meses, sem que nada fosse feito.


As novas guerras não eram como aquelas às quais já estava acostumada, do cotidiano da vida na favela. Ela própria passou a andar com um alvo cravado em sua testa, sem nunca ter feito nada pra isso. Passou a ser covardemente perseguida em razão sua cor, do seu CEP, do seu saldo bancário. O extermínio de uma classe inteira deixou de ser velado e passou a ser desejado por parte da sociedade.


Mas quem tem tempo de pensar que se pode morrer a qualquer momento quando se tem que trabalhar todos os dias, em dois turnos, sábado, domingo e feriado pra pagar a comida dos filhos?


E mais uma vez, a vida seguiu. Os alvos continuaram saindo todos os dias para trabalhar.


Até que Constituição avistou no trem, em um pequeno espaço formado entre tantos braços e corpos, um adesivo na parede que lhe remeteu a uma sensação conhecida.


Aquele sentimento que já havia sido plantado nela, anos atrás. A familiaridade da sensação trouxe junto um conforto, um alívio de saber que nem tudo estava perdido. A esperança que um dia brotou dentro dela não estava completamente seca. Do lado de fora, ela ainda lutava para sobreviver em uma pequena fresta de luz solar.

Novamente, sentiu que as coisas estavam prestes a mudar. Dessa vez tinha que ser pra melhor. Ela faria questão de contribuir para isso, e mais, de garantir isso.


Por menor que ainda fosse a faísca da revolução, ela havia começado. E, assim como o fogo impiedoso que se esparrama por tudo que encontra, sem qualquer barreira, aquela chama se tornava cada dia mais forte dentro dela.

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